Era um dia perfeito para representar a imperfeição.
O dia amanhece nublado, ela levanta atrasada, o café acabou, a roupa
escolhida é para o frio de agosto, o sol surge bem quente no mesmo
instante em que ela coloca o pé na rua.
O ônibus não passa, o atraso se torna inevitável. A cidadã estranha que espera no ponto puxa papo e começa a reclamar até da presidente,
como se ela fosse diretamente responsável pelo seu ônibus não passar de jeito
nenhum naquele ponto, naquele dia.
“Ai, esqueci de tomar café da manhã. De novo”, ela pensa.
20, 30, 40 minutos, o ônibus não passa. “Vou de metrô”, mas
o bilhete único não tem carga suficiente. Na carteira, nada de dinheiro.
Pensa em alternativas, decide então pegar o primeiro ônibus que
aparecer, ir até o metrô e lá resolver a questão do crédito no bilhete, da
passagem e de todo o resto.
Muito atrasada, inevitavelmente.
Recarga online não disponível, carteira vazia, porta
giratória impede passagem, senha do cartão não confere, sistema para recarga
fora do ar, usuários contando moedinha por moedinha ao comprar o bilhete, outros demorando eternamente para passar pela catraca.
“Eu não deveria ter saído da cama”, ela pensa.
Ufa! Ela está dentro do metrô. Lotado. Mas é claro que está
lotado, o dia dele tem que começar errado. Todo errado. E é apenas uma
quarta-feira.
As portas do metrô se fecham e revelam, no reflexo do vidro,
um cabelo mal arrumado, uma pele pálida pedindo uma maquiagem e a camisa, tão
cuidadosamente passada, já meio amassadinha. “É só comigo”, repete mentalmente
o que outras 50 pessoas, só dentro daquele vagão, devem estar pensando naquele exato momento.
Põe os óculos de sol de volta no rosto, dá uma ajeitada na
camisa e no cabelo e “Coragem!”: assim ela encara o que tem por vir.
São mais dois ou três minutos de pensamentos repletos de mau humor
mas interrompidos com pequenos risos, típicos de quem tenta enxergar graça até
nas “tragédias” do dia-a-dia. Parece impossível para ela naquele momento, mas
ela conclui “Amy Winehouse, te entendo” pensando no vinho que está em casa, na
cerveja à venda na padaria e no chopp que gostaria de pedir no restaurante na
hora do almoço.
Não adianta ser blasé, pois tem horas que a gente está muito
blasé para ser blasé ou muito do lado negativo da bipolaridade para ignorar
fatos. “Contra fatos não há argumentos” ela se recorda da expressão que ela
mais odeia. E ri. “Pelo menos para isso ela serve”. Ri mais um pouco.
Primeira estação, o trem para e ela só pensa que “ainda
faltam duas”. Do outro lado da porta, três ou quatro usuários. Um deles alto, camisa
listrada um pouco amassada, cabelos com cachos bagunçados, barba por fazer e um casaco
de couro largado em um dos ombros. “Mas que cara estranho”, ela pensa enquanto aumenta
o volume do iPod e verifica se há novas mensagens no celular.
As portas se fecham e ela olha novamente “Bem estranho” e ri
por dentro. “Deixa eu ver se tem algo bom no instagram”.
O trem se movimenta por alguns segundos e ela olha mais uma vez, mas agora com um discurso
completamente diferente. “Que homem interessante. Estranho e bagunçadinho...” e
continua lá, olhando o celular, ouvindo Fiona Apple e seguindo seu caminho.
E então são necessários apenas mais alguns instantes para que ele
olhe para ela, por apenas três, quatro, talvez cinco segundos enquanto ela levanta os óculos de
sol e olha também, num encontro de olhares totalmente não planejado. Pronto. O
estranho que virou interessante se tornou “o homem da minha vida!!”
Dali em diante são apenas mais um ou dois minutos em que ela
olha, olha novamente e não consegue acreditar que ali na sua frente algo tão
bom aconteceu em um dia tão absolutamente errado. “Que boca é essa? Que olhar é
esse? E esse maxilar?” Não era a personificação da beleza, era a personificação
do interesse, do diferente, do intrigante. “Olha de novo?” ela pensa. E só
pensa, nada da verbalizar o que estava querendo naquele momento.
Próxima estação, e ele comete o crime imperdoável de descer,
e correr para o seu destino. “Nãããããooooo” sua voz interior gritou, acompanhada
de uma provável expressão de tristeza misturada com total surpresa pelo que
acabou de encontrar em seu caminho.
Olha no relógio, ela está mais de meia hora atrasada, e
ainda levará mais uns 15 minutos para chegar. Pagou três transportes públicos
diferentes quando poderia ter pago "um e uns quebrados" se tivesse crédito em seu bilhete. Estava com calor naquele sol forte e debaixo de roupas razoavelmente quentes.
Mas seu dia estava iniciando perfeitamente, porque o que é bom tem que se
sobrepor ao que é ruim e “porque tudo que surpreende deve ser valorizado” ela
pensa, enquanto seleciona a melhor trilha sonora para aquele momento. E então ela sorri,
como sempre.
Um comentário:
Mari-cronistaaaaaa! Não conhecia ainda essa sua veia, AMEI! <3
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