quinta-feira, 20 de setembro de 2012

Retorno de Saturno



Uma noite de quarta-feira, quente, corpo cansado, mente idem.

Ela serviu uma taça de vinho, prendeu o cabelo e, enquanto a banheira enchia de uma água forte e fresca, a espuma se formando, ela se olhou no espelho.

Dando pequenos goles do vinho branco gelado, reparava em cada linha do seu rosto. Seus olhos esverdeados, a boca sem qualquer vestígio de batom, cílios longos e com rímel, algumas leves marquinhas na testa revelavam suas preocupações.

Banheira cheia, luzes apagadas, taça reabastecida ao lado, e um cansaço imensurável. Um cansaço do dia, da semana. Um cansaço nas pernas, nas costas, na cabeça, no coração, na alma.

Dois. Por algum motivo, ela escolheu esse número. Dois anos. Pela sua cabeça, em ordem cronológica apenas nas primeiras lembranças, se passou tudo o que havia vivido nos últimos dois anos.

Ela tinha mudado. E se mudado. Foram três vezes. Em dois anos morou com outras pessoas, morou com os pais, morou com os avós e, finalmente, morou sozinha. E assim ficou. E assim ficará, por mais dois e mais dois e mais não sabe quantos anos.

Ela aprendeu a preparar cinco pratos diferentes. Usou batom vermelho uma vez. Experimentou três perfumes, mas não mudou sua preferência.

Em dois anos ela conheceu mais de 100 pessoas, ficou amiga de mais de 15 e construiu verdadeiras amizades apenas com cinco. Perdeu três grandes amigos, duas grandes confianças e um pouquinho de compaixão.

Em dois anos ganhou alguns presentes, ofereceu vários. Preparou algumas surpresas, mas não foi surpreendida nenhuma vez. Pelo menos não agradavelmente.

Dois anos e mais alguma celulite. Perdeu dois, depois três, depois meio quilo. Recuperou todos. E mais uns três de brinde. Passou a falar três idiomas, mas foi incapaz de aprender a falar “não” em qualquer um deles.

Nos últimos dois anos visitou dez cidades, sete que ainda não conhecia. Viajou mais de dois mil quilômetros de carro, voou mais de 29 horas, pôs os pés em dois países estrangeiros, conheceu bem um deles, viu o oceano pacífico. E os Andes. E o Pão de Açúcar. Viu neve, viu sol, viu mar, viu montanha, viu serrado.

Jantou em mais de 20 restaurantes. Abriu exceções. Muitas. Duas delas foram comer cordeiro e foie gras. Experimentou mais de 30 vinhos. Não gostou apenas de dois deles.

Em dois anos foram mais de 50 happy hours. Muitos finais de semana sozinha, muitos fazendo compras, muitos falando sem parar. Cervejas seriam impossíveis de contabilizar.

Em dois anos ela tomou várias decisões. Escreveu mais de 40 matérias, mais de 100 press releases, mais de 50 notas e falou incontáveis horas ao telefone. A trabalho, na maioria delas. Textos para o blog? Muitos. E-mails? Milhares...

Tentou fazer uma estimativa de quantas mensagens de texto enviou e recebeu. Com certeza foram mais de mil. Se inscreveu em duas redes sociais, manteve apenas uma. Nela, incontáveis posts, a maioria irônica e de músicas ou filmes. Nos messengers, quase 11 mil mensagens trocadas apenas com uma pessoa em um dos canais. Imagina tudo?

Nesses dois anos foram diversos freelas e três empregos. Apenas um razoavelmente duradouro e feliz.

Em dois anos conseguiu fazer inimizades e chorar muito, diversas vezes. Mas riu também. Muito. De perder o fôlego.

Em dois anos iniciou três livros, não avançou em nenhum. Dançou incontáveis músicas, cantou muitas também e aprendeu a cantar muito bem três.

Em dois anos aprendeu a se divertir com esmaltes e sair do branquinho básico. Passou a gostar de cores escuras nas unhas dos pés. Mudou o método de depilação, mudou a cor do cabelo três vezes e o corte umas dez. Se arrependeu na maioria delas.

Ajudou muitas pessoas em dois anos, quase sempre com palavras. Aprendeu a ouvir mais e falar menos, mas ainda precisa praticar mais as duas coisas.

Em dois anos ela aprendeu a perder. Perdeu seu carro, perdeu tempo, perdeu coragem, perdeu dinheiro,  perdeu auto estima, perdeu seu apartamento, perdeu amizades, perdeu seus dois gatos, perdeu vários centímetros do seu coração. Chorou muito em todas as perdas, mas ficou mais forte.

Em dois anos tentou aprender a cobrar menos de si, mas não teve muito sucesso.

Em dois anos teve salários diferentes, alguns meses passou sem qualquer renda. Pagou muitas contas, diversas. Fez alguns poucos planos, conseguiu melhorar.

Nos últimos anos trocou muitas coisas: calça jeans por calça legging, salto por sapatilha, gloss transparente por gloss nude, bairro pelo centro, carro por metrô, Itaipava por Heineken, saia no joelho por saia longa, liso por ondulado, leite desnatado por semi-desnatado, toddy por café, requeijão por cream cheese. Mas não trocou o diretor de cinema, a banda ou o livro favoritos.

Assistiu incontáveis filmes nos últimos dois anos, seguramente mais de 200. Nesse tempo, assistiu Mary and Max, seu novo filme favorito. Em dois anos foi mais de 30 vezes ao cinema. A maioria das vezes sozinha. Em poucas comeu pipoca. Leu diversos livros. E muitas revistas e muitas crônicas e muitos...

Em dois anos foram tantas conclusões, tantas leituras, tantas mudanças de humor, de ideia, de opinião. Muitas.

Dois anos e ela conheceu algumas pessoas interessantes. Poucas. Se apaixonou uma vez. Desapaixonou, se apaixonou de novo - pela mesma pessoa - e o coração estava então vazio. E na verdade nem sabia direito o que havia sentido. Nessa parte, ela ficou bem confusa.

Deu um longo gole no seu vinho, mergulhou na banheira e ficou debaixo d’água por quase um minuto. Voltou, recuperou o fôlego, deu mais um gole no vinho. Levantou, foi para o quarto, acendeu a fraca luz do abajur. Respirou, pegou uma lingerie nova e branca, deitou ainda molhada na cama, respirou fundo e apagou a luz. “Preciso de novos dois anos. Agora é começar tudo de novo”.  

Com medos, inseguranças e incertezas. Mas com um novo sentimento por si. 

Ou apenas uma nova ideia. 

Ou apenas um novo dia.

2 comentários:

Bruno disse...

Lindo texto!

to seguindo...

Abraço!

Marianna D'Amore disse...

Obrigada Bruno !!